4 set 2013 | sem categoria
O projeto recebeu duras críticas de alguns representantes da moda nacional
Pedro Lourenço, Ronaldo Fraga e Alexandre Herchcovitch são os primeiros beneficiados
Há algumas semanas, os profissionais da moda foram pegos de surpresa com a decisão da Ministra da Cultura, Marta Suplicy, de liberar o uso de mecanismos de incentivo fiscal através da Lei Rouanet para os estilistas Pedro Lourenço, Alexandre Herchcovitch e Ronaldo Fraga, os dois primeiros com propostas de desfiles a serem feitas fora do território nacional (Pedro já tem nome fixo no calendário parisiense e Herchcovitch, em Nova Iorque). No total, seriam captados cerca de sete milhões de reais (!!). Foi rápido para o burburinho tomar proporções gigantescas; estilistas criticaram a decisão, jornalistas emitiram opiniões distintas e a moda brasileira foi assunto no mundo inteiro.
Marta, inclusive, reuniu-se com a imprensa nos últimos dias, juntamente com os representantes do setor na sede da ABIT (Associação Brasileira da Indústria Têxtil e de Confecção) para esclarecer qualquer dúvida em relação ao projeto, que, teoricamente, visa ao incentivo cultural nacional. Na ocasião, a ministra deixou claro que a Lei Rouanet não limita a possibilidade de outros profissionais de arte serem beneficiados com o recurso. Para Marta, incluir a moda dentro do viés da Lei é mais uma forma de dar uma nova força aos que não têm tantas possibilidades de divulgar o trabalho no exterior. É aí que entra um questionamento pertinente: por mais que o segmento no Brasil esteja ganhando cada dia mais força (dados do Anuário da Moda do Ceará comprovam), ainda existe muita deficiência na indústria nacional. O incentivo via Lei Rouanet não seria melhor usado internamente, com os inúmeros projetos que necessitam de ajuda financeira? Marta defende a decisão como parte de uma estratégia maior do Estado brasileiro, de internacionalização da cultura nacional com supostos reflexos na economia e até na política internacional.
Marta e a reunião na sede da Abit
A polêmica envolvendo o projeto respingou no Ceará com uma recente carta aberta, escrita por Claudio Silveira, idealizador do Dragão Fashion Brasil, hoje o maior evento de moda autoral do país. No texto, Claudio sugere uma reavaliação dos critérios de escolha para os beneficiados e um esclarecimento maior do Governo em relação às decisões para todos os profissionais de moda do Brasil. Confira a carta na íntegra.
Carta Aberta ao Segmento de Têxteis e Confecções do Ceará, à Sociedade Civil e à Imprensa em Geral
Sou um operário da moda brasileira. Sou, acima de tudo, um entusiasta, um sonhador e alguém que consegue manter-se com fé na nossa legitimidade. E foi para manter a moda na pauta que, há 15 anos, lançamos o primeiro Dragão Fashion Brasil, hoje principal evento de moda autoral do País.
Graças a sólidas parcerias, esse grande encontro da moda brasileira transcende o próprio formato inicial – restrito a desfiles – e estende seus tentáculos para as mais diversas áreas da cultura e da capacitação para a própria indústria da moda.
Incrustado em plena capital do Ceará, o DFB é um festival composto por ciclos de palestras com nomes vindos de todo o mundo; concursos de criação envolvendo Faculdades e Cursos de Estilismo e Moda Brasil afora; atividades de capacitação direcionadas para o segmento têxtil e confeccionista; exposições que ajudam a contar a história de nosso povo a partir das leituras diversas da moda. É, enfim, a celebração do nosso jeito de ser, de perceber e de retransformar a nossa realidade, utilizando a força criativa como moto contínuo de nossa batalha.
Há 15 anos, o Dragão Fashion Brasil mantém-se fiel a seu DNA e, mesmo à sombra de uma crise econômica internacional, continua reforçando seu caráter legitimamente brasileiro.
E é em nome do DFB que gostaríamos de dividir algumas reflexões, motivadas, principalmente, pelos acontecimentos que marcaram os últimos dias e que merecem uma discussão mais aprofundada por todos os setores.
O vento está a favor. Mas como navegar em uma barca que parece furada?
Na última semana, grandes criadores/marcas brasileiras (Pedro Lourenço, Alexandre Herchcovitch e Ronaldo Fraga) receberam autorização para captação de recursos via Lei Rouanet.
Promulgada em 1991, a Lei Rouanet tem por missão facilitar o acesso do povo à cultura e fomentar o mercado cultural, através de isenções de tributos para patrocinadores. A primeira questão que surge, no caso acima citado, é a contrapartida efetiva que as três marcas beneficiadas podem apresentar para a cultura do nosso país: o projeto de Pedro Lourenço prevê a captação de até R$ 2,8 milhões para dois desfiles em Paris; o de Alexandre Herchcovitch, R$ 2,6 milhões para se apresentar em Nova Iorque; já Ronaldo Fraga poderá captar até R$ 2 milhões para apresentar duas coleções em solo brasileiro, no São Paulo Fashion Week, inspiradas em Mário de Andrade, João Cabral de Melo Neto e no artesão do Cariri, Espedito Seleiro.
Na contramão das marcas acima citadas, o Dragão Fashion Brasil vale-se de ferramentas como a Lei Rouanet para, captando muito menos que os valores em questão, realizar, em cada edição, mais de 30 desfiles (nacionais e internacionais), bem como palestras, exposições e toda uma infraestrutura para abrigar convidados, imprensa e público em geral, já que os desfiles são gratuitos. Envolvemos, dessa maneira, a população, a indústria e setores afins, como o comércio, o turismo e a cultura.
Não pretendemos entrar no mérito de cada marca ou em seu valor para a representatividade de nossa indústria sucateada. Nem mesmo expor indignação ao constatar que o valor autorizado para captação chega a ser quase 6 vezes maior que o necessário para a execução dos projetos com excelência.
O que pretendemos discutir é a situação atual de um mercado combalido e, quase sempre, à revelia de uma relação mais justa para com o Governo e suas tributações.
Em paralelo à polêmica anterior, os números apresentados na edição 2013 do Anuário da Moda do Ceará* são animadores: previsão de crescimento de 7,1% em volume para o setor de calçados; 4,6% para o segmento têxtil, incluindo fios, tecidos e malhas; e 8,3% para o setor de artigos confeccionados.
Ainda de acordo com o levantamento, o número de empresas têxteis e confeccionistas saltou, entre 2008 e 2012, de 1.441 para 1.704 – aumento de 18,2%. Os empregos formais gerados pelo segmento no Estado já chegam a 64,9 mil.
Pelo menos no papel – e os números sinalizam isso -, a indústria da moda cearense diverge bastante da realidade nacional, em que o segmento têxtil mingua a cada ano, perdendo espaço a cada dia para a informalidade.
Mais respeito, por favor!
Precisamos, urgentemente, reavaliar os critérios para aprovação dos projetos; a paridade é um item legitimado pela própria Lei Rouanet – ou seja: qualquer um, inclusive pessoas físicas, está apto a solicitar esse tipo de fomento para seus projetos – que deve ser discutido é a relevância das propostas apresentadas e o retorno social ou cultural que ela pode representar. Afinal, é para isso que nossos impostos devem ser direcionados. Parafraseando o posicionamento do site “Trendcoffee.cc”, acreditamos ser função do Governo “regular mercados e possibilitar ao produto nacional seu desenvolvimento e expansão, seja através de linhas de crédito disponíveis, manutenção de câmbio, regulamentação do setor ou isenção fiscal”.
Por isso a importância de tornarmos cada vez mais transparentes e claros todos os processos que envolvem projetos que visam o estímulo a esse segmento fundamental para o crescimento do próprio país.
Há 15 anos, o Dragão Fashion Brasil mantém-se na trincheira dessa luta: profissionalizando o mercado; proporcionando visibilidade para novos talentos; levantando a discussão e o debate em torno da nossa indústria.
Esse é um momento de mudanças estruturais em todas as camadas do nosso país. Moda, mais do que um exercício criativo, é um negócio e, como tal, merece o respeito e a consideração empregados a outros setores de nossa economia.
Para que continuemos a gerar milhares de empregos; a contribuir com milhões em impostos; e a alimentar o sonho e o desejo de uma economia atordoada por décadas de desrespeito, amadorismo e má vontade.
Nossa luta é legítima; nosso grito, pertinente. Merecemos ser ouvidos não por caridade, mas por relevância.
Diante dos fatos, gostaríamos, em nome do Dragão Fashion Brasil, de abrir um canal direto com os meios de comunicação, para que possamos trazer essa discussão sobre a realidade da indústria do Ceará e do Brasil, aproximando-a para todas as esferas da sociedade civil.
Foto: Folha de São Paulo
Setores Culturais reagem à decisão
As primeiras reações de outros setores culturais já foram sentidas nos últimos dias. Entidades do teatro afirmaram que o Ministério deve receber um ofício criticando a forma como a Lei Rouanet está sendo usada na moda. No texto, o presidente da APTI (Associação de Produtores Teatrais Independentes), Odilon Wagner, afirma que não vê problemas na inclusão da moda na Lei, desde que o benefício vá para a parte criativa dos artistas e não para a “promoção” de suas roupas por meio de desfiles.
Os representantes da moda e da cultura estão de olhos abertos e, pelo jeito, essa história ainda vai dar muito pano pra manga.
Por Lucas Magno